Estamos preparados para incorporar as competências socioemocionais da BNCC?

2018-10-23T09:32:51-03:00 16/08/2018|

Pesquisa com professores de Educação Infantil sugere equívocos ao lidar com a afetividade na escola. Precisamos discutir mais esse tema!

Por Luciene Tognetta, para a Coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola 

A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apontou aspectos da escola que sempre existiram, mas não eram explicitados nos currículos brasileiros.  Formar alunos que sejam assertivos, que se autoconheçam, que sejam responsáveis, que possam respeitar o outro e se sentir respeitado são competências tão importantes quanto o domínio lógico-matemático ou a leitura e a escrita. Alguém discorda? A questão é: como equacionar tudo isso? Como é que professores darão conta dessas competências se muitas vezes não têm ideia do que seja, de fato, trabalhar com as questões afetivas?

Infelizmente, a imposição dessas novas competências no currículo brasileiro, ainda que sejam importantes, soa como injusta, já que o professor pouco estudou sobre essas questões em suas graduações e poucas possibilidades têm de continuidade desses estudos na sua atuação. Em países desenvolvidos, isso já é feito há bastante tempo.

Em 2011, eu e outros integrantes do  Grupo de Estudos de Educação Moral (GEPEM) da Unicamp/Unesp conduzimos uma pesquisa sobre como a aplicação desses aspectos afetivos (os chamados hoje “socioemocionais”) era compreendida por professores em suas ações cotidianas.  Alguns professores de Educação Infantil do interior de São Paulo foram convidados a participar e de forma espontânea se comprometeram a responder a um questionário. Foi uma pesquisa amostral pequena, mas que serviu para nos dar algumas pistas do que pensam os professores sobre afetividade dentro da escola e como trabalham essas questões.

Leia mais: Criança gosta de escolher: liberdade de opções incentiva aprendizagem

Naquele momento, pouco ou quase nada se falava sobre as “competências socioemocionais”, mas se sabia, pelas próprias teorias do desenvolvimento muito mais antigas, que o tema da afetividade deveria ser considerado na formação de nossas crianças. Sob o ponto de vista da Psicologia Genética Piagetiana, sabíamos da necessidade do desenvolvimento afetivo ser equacionado como Jean Piaget o pensou: na convivência, consigo mesmo, com o par e com a autoridade (Piaget, 1952).  Para ele, de forma geral, há uma evolução no sentido humano dessas relações que culminam num ponto mais complexo:

A concepção de afetividade para Piaget é uma concepção de relações que culminam na moral. A partir dessa ideia de afetividade, nós criamos três grupos de perguntas para verificar se os professores conseguiam entender como trabalhar questões da afetividade relacionadas à relação entre o “eu” e o outro “autoridade”; o “eu” e o outro “par” e o “eu consigo mesmo”.

Leia mais: Metodologias ativas: entenda como elas favorecem a aprendizagem

O primeiro grupo de perguntas era relacionado à afetividade nas relações com a autoridade. Para cada pergunta nós tínhamos uma escala likert, que vai de 0 a 4 pontos, com as opções  muito importante para o seu trabalho, importante, pouco importante ou nada importante.

Perguntamos para o professor, por exemplo: o quão importante eles achavam que era “mostrar indignação frente a uma situação de injustiça cometida entre os alunos”. Obtivemos as seguintes respostas: 25% disseram considerar muito importante, 40% importante, 20% pouco importante e 15% nada importante. Aparentemente, muitos professores compreendem o tema da afetividade como ser carinhoso com os alunos como se não fosse adequado corrigi-los ou mesmo demonstrar sentimento de desagrado frente a um problema.

Nesta pesquisa, a maioria dos professores considerou “premiar um bom comportamento de um aluno” mais importante do que demonstrar indignação por alguma situação de injustiça. Isto é, o percentual de muito importante para essa questão foi maior do que na anterior (20% muito importante, 60% importante, 10% pouco importante e 10% nada importante).

Já prêmios e castigos ainda são entendidos como boas ações para se obter um bom comportamento. Contudo, interessantemente, a maioria dos educadores julgou ser pouco importante “excluir os alunos da atividade por um tempo, até que eles se comprometam a respeitar as regras” (30% disseram que isso é nada importante, 40% pouco importante, 20% importante e 10% muito importante). Isso talvez aponte que precisamos discutir mais as possibilidades de sancionar um comportamento dos alunos pela reparação e pela necessidade de que eles tomem consciência do problema causado. Os limites de tempo para se voltar a uma atividade quando se exclui temporariamente são regulados pelos próprios alunos para que assumam e se comprometam com o que deixaram de fazer.

E sobre as relações entre os pares? O que pensam esses professores? Quando perguntamos sobre a importância de “incentivar as crianças para falarem publicamente como se sentem em determinado dia”, tivemos 35% das respostas para muito importante, 55% importante 3% como pouco importante e 7% nada importante).

Parece que alguns professores sabem da necessidade de que haja espaços para que as crianças falem o que sentem, mas não quais são os melhores para isso. É preciso lembrarmos que não se expõem os sentimentos infantis a todos. Falar de si não deve ser uma obrigatoriedade em roda e para todo mundo. Fazendo isso, invadimos a “fronteira natural da intimidade” que a criança está ainda construindo.

Há um texto interessante de um autor chamado David Elkind no livro “Crianças e adolescentes: Ensaios interpretativos de Jean Piaget”, em que ele destaca alguns equívocos da escola: acreditamos que criança pensa como adulto, colocando-a sentada enfileirada por 4 horas, com um intervalo de 20 minutos e achamos que ela ficará atenta  nesse tempo todo estabelecendo relações mentais apenas, sem falar, sem andar, sem se comunicar.  Da mesma forma, outro grande equívoco é acreditar que elas não sentem como um adulto: então, submetemos as crianças a falarem sobre o que sentem a outras publicamente – o que obviamente não faríamos com um adulto.

Em outra questão: “Comentar em sala a atitude errada de algum aluno, para colocar como exemplo”, tivemos 0% para muito importante, 22% para importante, 38% para pouco importante e 40% para nada importante. Notemos que 22% dos educadores parecem acreditar que a moral possa ser formada pelo exemplo e não por um processo de autorregulação. Somado a isso, há ainda a mesma perspectiva anterior que não devemos expor a criança.

Finalmente, as questões sobre a última das relações: consigo mesma. Perguntamos aos professores sobre “incentivar e oferecer oportunidades de a criança ficar só, consigo mesma” e quase 50% disseram considerar a questão “pouco ou nada importante”. Por certo, há um cuidado em jogo quando essas crianças são pequenas. No entanto, o fato de que metade se refira a “não” oferecer oportunidades de ficar só valida a concepção de que, muitas vezes, não entendemos que as crianças também precisam de espaços para “quererem” estar consigo mesmas e que essa é uma oportunidade valiosa de construir o autoconhecimento.

Essa pequena amostra do que pensam os professores em 2011 desperta em nós um alerta: sabemos pouco sobre o que fazer no cotidiano para se trabalhar com um tema tão importante, como é a convivência. Precisamos com urgência de mais estudos sobre essas questões.

Luciene Tognetta é professora do Departamento de Psicologia da Educação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Fez doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade do Minho de Portugal.

Acesse todos os textos publicados na coluna Pesquisa Aplicada
Acesse a coluna no site da Nova Escola