Ao propor atividades lúdicas, é importante dar ao aluno liberdade de escolha. Conheça projeto da Unesp com crianças com dificuldades de alfabetização
Por Silvio Henrique Fiscarelli para a Coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola
Desde 2016 realizamos na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) um projeto com crianças que apresentam dificuldades no processo de alfabetização. Um dos aspectos fundamentais desse trabalho foi apresentar os conteúdos escolares de uma maneira alternativa à oferecida pela escola, pois se a criança não conseguiu aprender antes, entendemos que não é produtivo repetir o mesmo formato e abordagem, ou seja, oferecer “mais do mesmo”. Essa é uma atividade que busca associar extensão e pesquisa, uma vez que, ao mesmo tempo em que oferecemos um serviço para a comunidade, também temos a oportunidade de identificar os problemas de aprendizagem dos alunos e buscar soluções para eles.
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Já faz um bom tempo que as pesquisas vêm apontando que nossos alunos aprendem de maneiras diferentes, vide os tão famosos “estilos de aprendizagem”. Logo, faz todo sentido oferecermos os conteúdos com estratégias e formatos diversificados, permitindo que os alunos experimentem e processem informações por meio de vários tipos de linguagens. Neste sentido, nossa abordagem se fundamenta no uso de pequenos jogos educacionais, normalmente disponíveis na Internet, que abordam especificamente as diversas habilidades e competências exigidas no processo de alfabetização.
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Pesquisas realizadas por autores como Gee (2008), Jaconbsen (2013), Alvez (2014) e Fiscarelli et all (2017) apontam a interatividade presente nos jogos como um elemento motivador capaz de promover um engajamento maior de crianças e jovens no processo de aprendizagem. Tal motivação pode ser classificada como motivação intrínseca, isto é, que vem de dentro do indivíduo, composta por impulsos que levam a comportarmos baseados em valores, interesses e personalidade. Esse tipo de motivação é diferente da motivação que resulta de recompensas externas, como a nota da prova, o ponto positivo e o elogio, que são classificadas como motivações extrínsecas. Assim, os jogos são recursos que podem se encaixar na categoria de motivação intrínseca, pois estão associados à diversão, incentivam o lúdico e já fazem parte da cultura infantil.
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Dado o cenário inicial, nosso desafio era ajudar um grupo heterogêneo de crianças entre oito e dez anos de idade, que apresentavam diferentes dificuldades no processo de aquisição da linguagem e nas operações básicas de matemática.
Nosso primeiro passo foi aprofundar o diagnóstico inicial de cada criança tentando obter mais detalhes sobre suas dificuldades e buscando em seguida oferecer um conjunto de jogos/conteúdos personalizados. Nossa lógica era: cada criança irá realizar apenas atividades relacionadas às suas dificuldades.
Erramos! Já na primeira sessão as crianças perceberam que, embora estivessem na mesma sala, faziam atividades diferentes e começaram a parar o que estavam fazendo para olhar o que o colega ao lado estava jogando. Não demorou muito para começarem a questionar: “Eu também quero jogar aquele jogo!”; “Por que no meu computador não tem aquele jogo?”; ”Por que eu não posso jogar aquele?”. Nossa reação aos questionamentos foi explicar que cada uma tinha necessidades diferentes e, portanto, deveria jogar um tipo diferente de jogo. No entanto, notamos ao longo da segunda e terceira sessões que aquela dinâmica de trabalho estava se mostrando inadequada. Não só pelos questionamentos das crianças, mas também pelo risco de elas se sentirem constrangidas, de começarem a acreditar que não tinham acesso a alguns jogos porque “sabiam menos” e que não conseguiriam acompanhar as outras crianças.
Também concluímos que o que realmente estava em jogo era a questão da liberdade de escolha, pois se o jogo está associado à diversão, a uma atividade prazerosa, ele não poderia ser uma prática completamente direcionada, na qual a criança torna-se passiva novamente. Ou seja, o uso do jogo como elemento motivador exige dar à criança uma certa liberdade para poder escolher o que jogar, sem a qual ele também se torna uma obrigação.
Deci e Ryam (2008), dois psicólogos que criaram a Teoria da Autodeterminação, que trata sobre aspectos da motivação, vão dizer que as pessoas, em maior ou menor grau, têm a necessidade de sentir que estão no controle de seu próprio comportamento. Não há espaço para a motivação intrínseca quando eu não participo das decisões, quando algo é imposto de “cima para baixo”.
A partir da quarta sessão de atividades com as crianças, começamos a adotar esse direcionamento e mudamos nossa abordagem metodológica. Todas as crianças passaram a ter acesso a um mesmo conjunto de jogos, que só seriam alterados quando todas estivessem dominando completamente os conteúdos contemplados neles. Vocês podem estar se perguntando: “então, algumas crianças realizavam atividades que já dominavam?” Sim, mas a pesquisa nos ensinou mais algumas coisas. Em primeiro lugar, que naturalmente após sanar a curiosidade inicial, as crianças tendiam a buscar os jogos que fossem mais desafiadores, ou seja, quando já se sabe a resposta ou quando não existe um desafio, a tarefa começa a ficar chata. Em segundo lugar, ver o colega ao lado em um determinado jogo impulsiona na criança a vontade de tentar enfrentar um novo desafio, mesmo que ela ainda não domine o conteúdo escolar presente no jogo.
Qual a principal lição que tiramos dessa experiência? Que ao propor atividades lúdicas, principalmente com jogos, é importante oferecer ao aluno a liberdade de escolha. Uma maneira simples de fazer isso é apresentar, quando possível, várias atividades semelhantes ou relacionadas para que a criança possa escolher por qual deseja começar. A escolha de um conjunto mais amplo de atividades, mas que estejam interrelacionadas pode dar essa sensação de liberdade sem implicar na perda dos objetivos de aprendizagem.
Silvio Henrique Fiscarelli é mestre e doutor em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e professor na mesma instituição
Para se aprofundar no assunto:
GEE, J. P. Video Games, Learning, and “Content”. In: Miller, Christopher Thomas (org.). Purpose and Potential in Education. Nova York: Springer, 2008.
JACONBSEN, D. R.; MAFFEI, L. De Q.; SPEROTTO, R. I. Jogos Eletrônicos: Um Artefato Tecnológico Para o Ensino e Para a Aprendizagem. In: Anais XI Encontro Nacional de Educação Matemática. XI ENEM. Curitiba, 2013.
ALVES, L. G. A cultura lúdica e cultura digital: interfaces possíveis. Revista entreideias: educação, cultura e sociedade, 2014.
FISCARELLI, S. H.; MORGADO, C. L. ; UEHARA, F. M. . Objetos de aprendizagem e alfabetização: uma proposta de uso de recursos lúdicos para crianças com dificuldades de aprendizagem. CONHECIMENTO & DIVERSIDADE, v. 9, p. 144-160, 2017.
Deci, E. and Ryan, R. Self-determination theory: A macrotheory of human motivation, development, and health. Canadian Psychology/Psychologie canadienne, 2008. 49(3), pp.182-185.
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