Etnomatemática na sala de aula

2019-06-07T09:16:31-03:00 03/05/2019|

Conheça os conceitos da etnomatemática, que nos inspiram a fazer da sala de aula um lugar de encontro entre culturas

Por Jonei Barbosa, para coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola

É amplamente aceita a percepção de que a matemática está presente em diferentes contextos culturais. Fala-se na “matemática do pedreiro”, na “matemática do marceneiro”, na “matemática dos camponeses”, e assim por diante. Decorre, portanto, que há saberes e fazeres matemáticos (sim, no plural!) para além daqueles que circulam na academia e na escola.

Este entendimento levou pesquisadores em Educação Matemática a constituírem um programa de pesquisa, iniciado em meados dos anos 70 e 80, chamado de Etnomatemática, do qual o brasileiro Ubiratan D’Ambrósio foi um dos mais destacados pioneiros. Para ele, o Programa Etnomatemática é um conceito amplo que busca entender como a espécie humana desenvolveu seus meios de sobrevivência e transcendência, não restringindo-se, portanto, às ideias, práticas e técnicas matemáticas (D’AMBRÓSIO, 2018)

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Por vezes, a pesquisa etnomatemática focaliza a compreensão de saberes e fazeres (classificar, quantificar, medir, etc) que reconhecemos como matemáticos. Digo “que reconhecemos”, pois somos nós, com a perspectiva da academia ou da escola, que os vemos dessa forma. Nas diferentes culturas, o mais provável é que os saberes e fazeres estão tão entrelaçados, que não faz sentido falar deles como separados de suas respectivas culturas (KNIJNIK; WANDERER; GIONGO; DUARTE, 2012).

Os saberes e fazeres matemáticos em outras culturas não são versões do conhecimento acadêmico e escolar, mas são relacionais aos seus respectivos contextos socioculturais.  Como ilustração, cito um estudo que conduzi com colegas sobre a matemática financeira praticada em bancos e aquela expressa em livros didáticos (QUEIROZ; BARBOSA; NOSS; HOYLES, 2018). A análise sugere que as rotinas bancárias são fortemente organizadas em torno do que se pode fazer ou não com o sistema de informação adotado pelo banco. Diferentemente, a matemática financeira encontrada em livros didáticos é organizadas em torno de exercícios.

A Etnomatemática traz implicações pedagógicas para a matemática escolar: se reconhecemos que há matemáticas, no plural, devem os professores que ensinam matemática apenas abordar a matemática escolar? Se seguirmos dessa forma, podemos deslegitimar ou silenciar os saberes de fora da escola, o que, em última instância, não contribui para a convivência democrática na sociedade.

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Ninguém nega a importância da matemática escolar na sociedade e a necessidade dos estudantes terem acesso a ela. Também não se trata de usar a matemática de outras culturas como “conhecimentos prévios” a serem substituídos pela matemática escolar.

Monteiro e Mendes (2015) propõem que consideremos a sala de aula como um espaço de encontro entre saberes e fazeres matemáticos, para exploração de suas diferenças e seus paralelismos. As explicações e as técnicas de resolução de problemas de fora da escola são trazidas para dialogar, comparar e tensionar com aquelas já naturalizadas na escola.

Um possível exemplo é discutir com os estudantes como um marceneiro realiza a cubagem da madeira. Biembengut e Hein (2000) contam que marceneiros no sul do país usam o seguinte procedimento: passam uma linha de cordel contornando o tronco na metade da altura estimada; dobram a linha em quatro partes iguais, elevando ao quadrado a medida do ¼ da linha do contorno; e finalmente, multiplicam pela medida da altura do tronco.

Na sala de aula, poderíamos comparar a estratégia do marceneiro com outras formas de resolver o problema na matemática escolar, por exemplo, considerando o tronco de uma árvore como um cilindro. Não se trata de verificar a validade do saber e do fazer do marceneiro à luz da escola, mas discuti-lo na perspectiva de sua cultura, bem como distinguir outras formas de lidar com o problema (como o escolar).

Outra forma de desenvolver a prática pedagógica à luz da Etnomatemática é solicitar que os estudantes visitem outros grupos culturais e pesquisem saberes e fazeres que possam ser reconhecidos como matemáticos, trazendo-os para discussão em sala de aula. É, por exemplo, o que a pesquisa de Bortoli, Marchi e Giongo (2014) ilustra.

Em uma turma do 2o ano do ensino médio, os estudantes foram organizados em grupos para levantar a matemática de profissionais da construção civil (engenheiro, mestre de obra, pedreiro).   Eles tiveram que visitar canteiros de obras e entrevistar os profissionais. Depois disso, os grupos apresentaram os saberes e fazeres, como a técnica de construção das “tesouras” na sustentação do telhado, a determinação do desnível entre dois pontos de um terreno e o esquadro do chão com uma parede de um cômodo. Na apresentação, teve-se a oportunidade de discutir as diferenças entre as formas de abordar os problemas no mundo da construção civil e na escola (por ex., usando trigonometria).

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Em ambos os casos, para compreender os saberes e os fazeres matemáticos de outras culturas, os estudantes (e o professor) são requeridos a compreendê-los, descrevê-los e representá-los. É o que Rosa e Orey (2017) chamam de etnomodelagem, que, nas palavras dos autores “enfatiza a organização e a apresentação das ideias e procedimentos matemáticos desenvolvidos pelos membros de grupos culturais distintos” (p. 43).

Além de ampliar o repertório de saberes e fazeres dos estudantes, a prática pedagógica inspirada na Etnomatemática permite o reconhecimento e a valorização de outras culturas. Implicitamente, pela matemática, ensinam-se os valores da coexistência e do respeito cultural, que são fundamentais para o convívio democrático!

*Jonei Cerqueira Barbosa é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde desenvolve projetos de pesquisa e orienta iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado na área de Educação Matemática. É pesquisador produtividade do CNPq.

Para saber mais:

BIEMBENGUT, M. S.; HEIN, N. Modelagem matemática no ensino. São Paulo: Contexto, 2000.

BORTOLI, G.; MARCHI, M. I.; GIONGO, I. M. Entrecruzamento do pensamento etnomatemático e da história da matemática: possibilidades para uma prática pedagógica. Zetetiké, v. 22, n. 41, p. 59-82, 2014. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/zetetike/article/view/8646578

D’AMBRÓSIO, U. Etnomatemática, justiça social e sustentabilidade. Estudos Avançados, v. 32, n. 94, p 189-204, 2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v32n94/0103-4014-ea-32-94-00189.pdf>.

KNIJNIK, G.; WANDERER, F.; GIONGO, I. W.; DUARTE, C. G. Etnomatemática em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

MONTEIRO, A.; MENDES, J. R. A etnomatemática no encontro entre práticas e saberes: convergências, tensões e negociação de sentidos. Revista Latinoamericana de Etnomatemática, v. 73, n. 3, p. 55-70, 2014. Disponível em: <http://www.revista.etnomatematica.org/index.php/RevLatEm/index>

QUEIROZ, M. R. P. P. P.; BARBOSA, J. C.; NOSS, R.; HOYLES, C. The gap between the financial mathematics expressed in textbooks and that practiced in banks. Acta Scientiae, v. 20, n. 2, p. 96-116, 2018. Disponível em: <http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/acta/article/view/3816>.

ROSA, M.; OREY, D. C. Etnomodelagem: a arte de traduzir práticas matemáticas locais. São Paulo: Livraria da Física, 2017.

Este texto foi originalmente publicado na coluna Pesquisa Aplicada
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