Qual o lugar do brincar frente ao fascínio da tecnologia?

2019-06-14T10:28:11-03:00 14/06/2019|

O uso indiscriminado de tecnologia pode ser tão prejudicial quanto sua total exclusão

Por Alexandre Doia e Jordana Balduíno, para a coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola

Vivemos em uma era digital, em que as ferramentas tecnológicas facilitam os diversos aspectos da vida: trabalho, lazer, saúde, etc. É impossível imaginar como seria nossa vida sem esses recursos. Essa realidade já faz parte também da primeira infância. Nos deparamos com crianças, muitas delas antes mesmo de completar seu primeiro ano de vida, observando atentamente aquilo que é exibido em celulares e tablets por um longo período. A tecnologia traz inúmeros benefícios e pode ser uma grande ferramenta pedagógica, mas é necessário questionar o uso excessivo da tecnologia por crianças, dentro e fora da escola.

Para a terapeuta canadense Cris Rowan, o uso excessivo de tecnologia por menores de 12 anos pode ter relação com déficit de atenção, atrasos cognitivos, dificuldades de aprendizagem, impulsividade e problemas em lidar com sentimentos como a raiva. Destacamos aqui uma preocupação: que lugar o brincar tem ocupado na vida das crianças? Um único dispositivo consegue trazer uma infinidade de aplicativos e de entretenimento e isso nos faz questionar os impactos na constituição da criança e, logicamente, os desafios que a escola enfrenta diante dessas novas configurações da realidade. Os brinquedos estariam perdendo seu lugar por não serem tão atraentes e competitivos? Quais as implicações disso no desenvolvimento da criança?

Lev Vygotsky levanta uma questão pertinente sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento humano: através da brincadeira, o processo de imaginação pode ser impulsionado. A criança aprende a inventar cenários a partir de sua realidade e certas necessidades podem encontrar uma forma de resolução. Se nos primeiros anos de vida o comportamento é imposto pelo ambiente imediato, apresentando restrições, com o suceder do desenvolvimento, aprende-se a agir em uma esfera cognitiva que vai além dos limites físicos. Ou seja, através de motivações e tendências externas, a criança começa a interagir com os objetos de uma maneira diferente do que se vê.

Nesse sentido, ainda de acordo com Vygotsky, o brinquedo contribui para que esse pensamento se separe do objeto e as ações surjam das ideias e não das coisas. Isso, por exemplo, faz com que uma criança consiga imaginar que um graveto seja uma varinha de condão ou uma espada, ou ainda qualquer outro item pertinente à brincadeira. O que está em jogo não é o pedaço de madeira em si, mas sim as suas ideias sobre a situação e o que aquele graveto pode representar. Isso ajuda a criança atingir uma definição de conceitos e de objetos. Ela entende o que é aquilo que tem em mãos, mas atribui ao objeto outro significado que irá se encaixar no contexto e na ideia da brincadeira. E é aprendendo a agir através dos significados que a criança vai desenvolvendo o pensamento abstrato.

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Esses aspectos nos fazem pensar sobre o brincar na era digital e as atuais formas de entretenimento. É notório o fascínio dos pequenos frente às telas de computador, smartphone e tablet. Nós, adultos, que possuímos um desenvolvimento cognitivo mais avançado, temos dificuldade em acompanhar e elaborar todos os estímulos que nos chegam através dos inúmeros aparelhos eletrônicos. Quando pensamos nas crianças, esse processo se intensifica. Por isso, é importante prestar atenção ao uso das tecnologias: para o potencial que esses meios carregam e, ao mesmo tempo, para os prejuízos do uso excessivo.

As tecnologias se diferenciam muito das brincadeiras que exigem movimentos, entendimento da realidade e das coisas que as circundam. As telas mostram uma fantasia dirigida e não algo que estimule a elaboração do próprio pensamento. Com o uso recorrente, muitas crianças ficam entediadas na ausência de seus aparelhos, o que revela a angústia de não preencher esse vazio com aquilo que a imaginação poderia construir.

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O valor das brincadeiras na escola, como complementam Navarro e Prodócimo, depende de como os adultos encaram todos esses processos. Se a escola souber utilizar a tecnologia como uma ferramenta, ela pode se transformar em um motor para a realização de atividades. A tecnologia, junto à ação humana, ganha outro sentido. São os professores que possibilitam significar o que as telas por si só não conseguem fazer. As imagens podem ser levadas para o mundo concreto, a fim de que os processos de abstração, apontados por Vygotsky, não sejam perdidos.

Diante de um mundo tecnológico, o uso indiscriminado de equipamentos pode ser tão prejudicial quanto sua total exclusão. O brincar proporciona uma atitude de receptividade frente à realidade, que a criança busca compreender através de perguntas e respostas. Nesse lugar aparece a interação humana para ajudar a compreender e dar significado, mediando os saberes e conhecimentos produzidos socialmente. Para pensar e sentir é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo, algo que por si só a tecnologia sozinha não consegue fazer. A tela que mostra um mundo não pode ser a mesma que apaga o que está em volta. A escola deve estar preparada para não seguir por um único caminho, utilizando a tecnologia sim, mas reconhecendo também a importância de brincar e de explorar aquilo que a virtualidade não consegue proporcionar.

Alexandre Doia é psicólogo e mestre em psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Jordana Balduino é psicóloga, com mestrado e doutorado em Educação e professora adjunta da UFG.

Para saber mais sobre o assunto

NAVARRO, Mariana Stoeterau. O Brincar na Educação Infantil. IX Congresso Nacional de Educação. III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia 26 a 29 de Outubro de 2009 – PUCPR. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2693_1263.pdf.

NAVARRO, M.S & PRODÓCIMO, E. Brincar e Mediação na escola. Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Florianópolis, v. 34, n. 3, p. 633-648, jul./set. 2012.

VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In: A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 103-119.

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