Por que precisamos de cotas raciais nas universidades – e não só sociais

2018-10-24T19:03:51-03:00 23/10/2018|

Bolsonaro defende reduzir cotas raciais, mas elas são necessárias para combater histórica desigualdade racial. Percentual da população negra com ensino superior é menos da metade do percentual da população branca

Por Tatiane Rodrigues e Ivanilda Cardoso

Ao ser sabatinado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 30 de julho, o candidato Jair Bolsonaro defendeu a redução das cotas raciais. “Não vou falar que vou acabar [com as cotas], porque depende do Congresso. Quem sabe a diminuição do percentual. Não só para universidade, mas para concurso público. Pelo amor de Deus, vamos acabar com essa divisão no Brasil”, disse ele. Não foi a única vez que o presidenciável se posicionou contra cotas raciais. Para discutir se tal ideia faz sentido, é preciso antes compreender o processo de implementação das cotas raciais no Brasil e por que elas existem.

Acesse aqui um pdf com as análises das propostas de educação dos candidatos

A partir da década de 1990, o governo brasileiro deu início a algumas ações em direção à formulação de políticas de ação afirmativa desenvolvidas em âmbito federal, tais como o “Programa de Ação Afirmativa para Homens e Mulheres Negros”, a determinação do Ministério do Trabalho de que 20% do Fundo de Assistência ao Trabalhador para o treinamento e capacitação profissional deveriam ser destinados a trabalhadores negros, principalmente mulheres, a assinatura do Programa Nacional de Ação Afirmativa pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002 (Moehlecke, 2002).

“A decisão por políticas de ações afirmativas no acesso ao ensino superior no país foi resultado de um amplo estudo dos indicadores de acesso e permanência no ensino superior, bem como de um complexo debate realizado nas comunidades universitárias”

Estas ações foram resultado, por um lado, de um contínuo processo de organização do movimento social negro, que em 1995, por exemplo, organizou a Marcha Zumbi dos Palmares e entregou o “Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial”. Em acréscimo às denúncias já realizadas, almejava-se exigir ações efetivas do Estado em pautar a temática racial na agenda dos problemas nacionais. Por outro lado, temos o reconhecimento do Estado brasileiro de que este tema seria enfrentado como política de Estado e não de governo. Este reconhecimento posicionou o Estado brasileiro em consonância com as agendas internacionais e os documentos de agências das quais somos signatários, tais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

As ações federais inspiraram uma série de ações semelhantes no início de 2002 por parte dos governos estaduais, principalmente a reserva de vagas nas universidades públicas para alunos negros e indígenas. Os esforços de universalização da educação básica possibilitaram uma melhoria contínua de todos os indicadores. Porém, levando-se em conta a variável raça, as desigualdades em relação aos anos de escolaridade se mantém estáveis, indicando que são produto de uma complexa trama entre as dimensões econômica, política e cultural (HENRIQUES, 2001).

Segundo dados da Pnad Contínua de 2017, a taxa de analfabetismo entre a população preta ou parda é de 9,3%, enquanto entre a população branca é de 4%. A diferença de acesso ao ensino superior também é muito grande:  somente 9,3% da população preta ou parda concluiu um curso de graduação, contra 22,9% da população branca.

A decisão por políticas de ações afirmativas no acesso ao ensino superior no país foi resultado de um amplo estudo dos indicadores de acesso e permanência no ensino superior, bem como de um complexo debate realizado nas comunidades universitárias. O momento culminante do reconhecimento das ações afirmativas como política de Estado se deu em 2012, com o voto de sua constitucionalidade no Superior Tribunal Federal (STF). O voto do relator Ricardo Lewandowski reconheceria que as cotas são constitucionalmente legítimas, pois são instrumentos para se obter a igualdade real.  Em diferentes momentos do texto em que justifica seu voto, Lewandowski coloca em debate a eficiência  (ou ineficiência) da universidade em lidar com a realidade social. “Universidade que não integra todos os grupos sociais dificilmente produzirá conhecimento que atenda aos excluídos, reforçando apenas as hierarquias e desigualdades que têm marcado nossa sociedade desde o início da história”, afirmou, na página 17.

Em outro trecho, na página 32, defende: “A universidade tem que se transformar em um espaço que se contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea apropriada com o mundo globalizado em que vivemos”.

“Cabe [aos chefes de governo] a tarefa de consolidar os mecanismos de Estado criados para enfrentar nossa histórica desigualdade racial, independentemente de sua matriz política ou coloração ideológica.
Do contrário, fere-se a Constituição”

No decreto n. 7824 de 11, de outubro de 2012, que ficou conhecido como Lei de Cotas, foi estabelecida a reserva de 50% das vagas nas 59 universidades federais e nos 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia para alunos do ensino médio público. As outras 50% permanecem para ampla concorrência. Das vagas destinadas a cotas, 50% foram reservadas para os estudantes com renda per capita familiar inferior a 1,5 salário mínimo. Dentro de cada grupo de renda, as reservas devem ser feitas para pretos, pardos ou indígenas de acordo com a proporção desses grupos no censo demográfico mais recente.

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Ao se reconhecer institucionalmente a estrutura complexa de nossa  desigualdade, objetivando promover equidade entre negros, índios, brancos e amarelos nos bancos universitários, tem-se a possibilidade efetiva de se reescrever a maneira de pensar, de produzir conhecimento e de ser universidade no Brasil. Com isso, temos esforços de Estado, e não de mais de governo, para romper com a universidade que prega homogeneidade e superioridade de conhecimentos produzidos na Europa e nos Estados Unidos, que expurga a presença e a memória de conhecimentos de outras raízes constitutivas de nossa própria sociedade.

A existência das políticas de ações afirmativas no Brasil, portanto, não depende, felizmente, da vontade ou do movimento autocrático de chefes de governo. A estes cabe a tarefa de consolidar os mecanismos de Estado criados para enfrentar nossa histórica desigualdade racial, independentemente de sua matriz política ou coloração ideológica. Do contrário, fere-se a constituição. E nos remonta à visão simplória de desigualdade do início do século XX.

Tatiane Rodrigues é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros/UFSCar. Ivanilda Cardoso é mestre e doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar.

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