Por que políticas de bônus salariais para professores nem sempre funcionam?

2019-11-25T15:37:22-03:00 17/10/2019|

Pesquisadores mostram por que é difícil transpor um modelo de bonificação criado para o setor privado para a área de Educação

Por Ariana Britto e Fábio Waltenberg, para a coluna Pesquisa Aplicada, parceria de Iede e Nova Escola

Em texto anterior neste espaço, começamos a discutir os chamados programas de responsabilização, que atrelam a remuneração do professor ao desempenho de alunos em testes – o professor recebe uma remuneração fixa mensal e uma parcela variável na forma de um bônus, em geral pago anualmente. Com exemplos de diversos países, inclusive do Brasil, mostramos que não são conclusivas as evidências sobre a eficácia dessas políticas. A literatura especializada nos oferece algumas hipóteses para explicar os resultados contraditórios, e é disso que trata esta coluna.

Leia mais: Bônus salarial para professor em função do desempenho do aluno em testes é uma política eficaz?

O modelo principal-agente, em que se inspiram os formuladores de programas de responsabilização de professores, foi pensado para relações laborais no setor privado, em que o resultado costuma ser um valor monetário (receita de vendas, faturamento, lucro) e não a aprendizagem de alunos de escolas públicas. Autores como Dixit (2002) e Larré e Plassard (2008) descreveram dificuldades envolvidas na transposição do modelo ao setor público e às escolas, as quais explicamos a seguir, de forma resumida:

Ausência de concorrência e de lucro – No setor público, e nas escolas em particular, não há busca por lucro, de modo que não é evidente o objetivo comum. A fixação de bônus baseados em notas de alunos em testes de larga escala padronizados faria convergir os interesses de todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. No entanto, esse alinhamento entre interesses pode não ocorrer tão harmoniosamente – em razão dos fatores descritos abaixo -, o que contribuiria para explicar tanto os resultados inconclusivos desses programas como sua frequente rejeição por parte dos professores e seus sindicatos.

Interesses múltiplos e conflitantes – Se é possível enxergar secretário de Educação e professor como principal e agente, também se pode considerar que o próprio secretário seja agente de outro principal, como o prefeito (ou governador), o qual, por sua vez, seria agente de principais como eleitores ou grupos de interesse (sindicatos, lobbies etc.). O próprio desenho de um programa pode atender a demandas de grupos políticos, sindicatos ou lobbies, ou tentar cumprir promessas de campanha. Assim, uma política inicialmente bem desenhada pode ser desvirtuada.

Andrade (2008) documenta que muitos programas, inclusive no Brasil, foram interrompidos e outros tiveram regras arbitrariamente modificadas. Trata-se, portanto, de uma rede de relações entre agentes e principais com objetivos variados, eventualmente conflitantes ou incompatíveis.

Professores com motivações não monetárias – No modelo agente-principal original, o agente extrai satisfação exclusivamente de sua remuneração (“motivação externa”), enquanto o esforço é um fardo. Tais pressupostos serão inadequados se o agente sentir satisfação no exercício do seu trabalho. Para Dixit (2002), a motivação de natureza não monetária, ou “motivação intrínseca”, poderia ser mais frequente entre quem opta por carreiras do setor público, especialmente profissionais de Educação ou saúde. Nesses casos, a escolha ocupacional aconteceria, em parte, por idealismo ou vocação.

Se estiver correta essa hipótese de que as motivações intrínsecas têm grande importância para o professor, os incentivos monetários não serão tão eficazes. Bénabou e Tirole (2003) argumentam, inclusive, que a motivação intrínseca dos indivíduos poderia ser reduzida na presença de uma forma de motivação externa tal como a monetária – o que é algo bastante indesejado.

Multiplicidade de tarefas e objetivos –  Professores e funcionários de escolas não realizam uma tarefa tendo como objetivo um resultado único. É razoável esperar de um sistema de Educação que os alunos adquiram conhecimento, desenvolvam raciocínio lógico, aperfeiçoem sua capacidade de comunicação e expressão. Também se pode desejar que sejam preparados para o mercado de trabalho e para a vida social, que aprendam a refletir criticamente sobre a sociedade em que vivem, que se desenvolvam emocional e afetivamente, que desenvolvam noções de cidadania e responsabilidade, entre inúmeros outros objetivos.

Quando uma pessoa exerce diversas tarefas, a teoria recomenda que se remunere de forma igualitária o esforço empenhado em cada uma delas. Suponhamos que haja somente dois objetivos – elevar a nota média dos alunos em testes, bem como a autoestima de estudantes – e que o professor precise empregar energia e tempo em atividades diferentes a fim de atingir cada um deles. Para incentivar professores adequadamente, seria necessário premiá-los por atingir ambos os objetivos. Mas há um obstáculo: como quantificar, a baixo custo, o nível de autoestima de um aluno?

Dessa forma, a proposta de remunerar resultados decorrentes de todas as tarefas de um professor torna-se impraticável. E, diante do anseio de se implementarem políticas de responsabilização, objetivos importantes, mas de difícil mensuração, podem acabar sendo preteridos em favor daqueles mais fáceis de medir, como notas em testes padronizados (Barr, 2012; Baber et al., 2010).

Limites à especialização – Face às múltiplas tarefas e objetivos de um educador, a literatura também propõe outro encaminhamento: o da especialização. Um exemplo de especialização é a alocação de um professor para cada disciplina a partir da segunda etapa do Ensino Fundamental.

Mas, voltando ao tópico anterior, se o objetivo fosse acréscimo das notas em testes e melhora da autoestima, um professor seria encarregado do primeiro objetivo, enquanto um psicólogo, do segundo. Entre as vantagens da especialização, destaca-se a possibilidade de se remunerar separadamente os responsáveis por cada tarefa. Quem tivesse tarefas com resultados mais facilmente observáveis receberia uma remuneração variável, já os especializados em tarefas com resultados dificilmente mensuráveis receberiam remuneração fixa. Porém, há limites à especialização na esfera da Educação.

Nem sempre é possível subdividir atribuições: a atuação de um professor “encarregado somente de transmitir conhecimentos” (objetivo mensurável, ainda que com ruído, como veremos) pode ter impacto na autoestima do aluno (cuja medição é mais difícil). Não é fácil picotar responsabilidades e resultados a ponto de a especialização resolver o problema da multiplicidade de objetivos apresentado acima.

Trabalho em equipe e aprendizagem cumulativa – A nota de um aluno em uma prova pode estar ligada ao que ele aprendeu em outras disciplinas também. Interpretar textos na aula de Língua Portuguesa ajuda a compreender problemas matemáticos e a entender questões de História, por exemplo. Se Educação é um trabalho em equipe, e se a aprendizagem em um ano depende do conteúdo absorvido no ano anterior, como atribuir a cada professor um bônus compatível com sua contribuição individual?

Sistemas de bônus individuais tendem a gerar incentivos mais potentes que sistemas de remuneração coletivos, em que grupos são premiados por resultados globais (de uma série ou escola). Num contexto de trabalho em equipe, sistemas individualizados podem gerar sensação de injustiça, por uma percepção de apropriação indevida do fruto de trabalho alheio. Exemplo: o carismático professor de Matemática pode considerar que deveria ser pago a ele o bônus de um faltoso professor de Física do mesmo ano, ou então ao assíduo professor de Física do ano anterior. Contudo, no limite, incentivos individuais poderiam desmotivar os professores a trabalhar em parceria com os colegas ou prejudicar o ambiente de trabalho na escola, lesando o aluno.

A alternativa dos incentivos coletivos, por outro lado, resulta na clássica dificuldade de provisão de bens públicos, descrita em manuais de microeconomia. Todos gostariam que os demais fizessem sua parte, se esforçassem para incrementar a aprendizagem dos alunos, e que o corpo docente, em consequência, conseguisse “produzir” o bem público em questão, que são boas notas e o consequente bônus coletivo. Na ausência de confiança recíproca entre os professores, e em função de dificuldades informacionais, discutidas a seguir, pode surgir o que se costuma chamar de “passageiro clandestino” (ou caronista, ou free-rider), que não se empenha, descumprindo sua parte no acordo, mas que usufrui do bônus.

Dificuldade de identificar e medir o “produto” do processo educativo – O modelo básico apoia-se no pressuposto de que não é possível observar o esforço, mas que é facilmente observável algum produto, tal como volume de vendas ou receita produzida por um vendedor. Não é evidente qual é o produto relevante do processo de Educação. Uma avaliação dita objetiva ignora dimensões do trabalho do professor que não estão ligadas à transmissão de conhecimentos (ponto já levantado acima). E mesmo que se considerasse a transmissão de conhecimento como a única meta importante, pode-se questionar a qualidade da informação oferecida pelos testes.

A nota é reflexo de um conjunto de fatores: correntes e passados, escolares e não escolares, determinísticos e aleatórios (Waltenberg, 2006), entre os quais a qualidade da alimentação do aluno; do apoio material e emocional oferecido por seus pais; dos professores de outras matérias e de anos anteriores; da motivação dos colegas de turma; da infraestrutura da escola.

O ideal seria utilizar como “produto” uma medida de desempenho de alunos tão limpa quanto possível. Isto é, que pudesse levar em consideração todas as variáveis que não são controláveis pelo professor (meio social, apoio dos pais, esforço do próprio aluno, etc) e também o desempenho anterior do estudante, visto que o processo de aprendizagem é cumulativo. Caso contrário, um professor que se defrontasse com uma turma difícil, por exemplo, ou com uma escola deteriorada, teria menor chance de fazer seus alunos aprenderem mais. O verdadeiro incentivo nesse caso seria, na realidade, um efeito colateral: diretores e professores evitariam alunos, turmas e escolas “difíceis”. Schookaert e Ooghe (2013) demonstram que qualquer programa de responsabilização – seja ele fraco (somente via divulgação de notas), seja ele forte (incluindo bônus ou penalização para professores e escolas) – tem como efeito colateral proporcionar incentivos para a seleção de alunos.

As pesquisas indicam que quando muitos fatores interferem num produto – no caso, as notas em testes padronizados – é preciso utilizá-lo com moderação na fórmula de remuneração, ou até descartá-lo em situações extremas (Prendergast, 1999). Por razão diferente, de que testes não avaliam plenamente o trabalho desenvolvido por professores, Baker et al. (2010) chegam à mesma recomendação: que testes padronizados sejam utilizados apenas como parte de um processo de avaliação mais abrangente dos professores.

Ariana Brittoé doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminenese (UFF) e professora do IBMEC.Fabio Waltenberg é doutor em economia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, e professor da UFF.

Este texto foi originalmente publicado no site da Nova Escola 

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Para saber mais
ALEXANDRE, Maraysa Ribeiro; LIMA, Ricardo Sequeira Pedroso de; WALTENBERG, Fábio Domingues. Teoria econômica e problemas com remuneração de professores por resultados. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 44, n. 151, p. 36-61,  Mar.  2014.  http://dx.doi.org/10.1590/198053142853.
ANDRADE, E. “School accountability” no Brasil: experiências e dificuldades. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 28, n. 3, jul./set. 2008.
BAKER, E. L. et al. Problems with the use of student test scores to evaluate teachers. EPI Briefing Paper, n. 278, 2010.
BARR, N. Economics of the welfare state. 5. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.
BENABOU, R.; TIROLE, J. Intrinsic and extrinsic motivation. Review of Economic Studies, v. 70, p. 489-520, 2003.
DIXIT, A. Incentives and organizations in the public sector: an interpretative review. The Journal of Human Resources, v. 37, n. 04, p. 696-727, 2002.
LARRÉ, F.; PLASSARD, J. M. Quelle place pour les incitations dans la gestion du personnel enseignant? Recherches Économiques de Louvain: Louvain Economic Review, v. 74, n. 3, 2008.
PRENDERGAST, C. The provision of incentives in firms. Journal of Economic Literature, v. 37, n. 1, p. 7-63, mar. 1999.
SCHOKKAERT, E.; OOGHE, E. School accountability: can we reward schools and avoid pupil selection? Bonn: IZA, may 2013. (Discussion Paper Series, n. 7420)
WALTENBERG, F. Teorias econômicas de oferta de educação: evolução histórica, estado atual e perspectivas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 117-136, jan./abr. 2006.