História de professor: Guadalupe e a luta pela cultura afro-brasileira em sala de aula

2021-11-28T18:48:23-03:00 18/10/2021|

Educadora de São Leopoldo (RS), há 33 anos na profissão, já recebeu diversos prêmios e segue motivada: “O aluno é o centro de tudo e a razão de eu continuar” 

“Na sala de aula
É que se forma um cidadão
Na sala de aula
É que se muda uma nação
Na sala de aula
Não há idade, nem cor
Por isso aceite e respeite”

É na letra de Leci Brandão de “Anjos da Guarda” que a professora Guadalupe da Silva Vieira, de São Leopoldo (RS), se inspira há 33 anos para tornar a sala de aula um espaço de acolhimento para os alunos. Desde pequena, Guadalupe via sua tia preparar aulas e preencher o diário colorido, que anotava sobre cada aluno e cada atividade passada. A motivação da tia para sempre buscar algo diferente para os seus alunos, inspirou-a. “Eu olhava admirada o seu diário com desenhos coloridos. E ela sempre me dava  as sobras das folhas mimeografadas e eu brincava de dar aula com as minhas bonecas”, relembra ela.

Foi  depois de se mudar de Caxias do Sul (RS) para São Leopoldo e conseguir uma bolsa de estudos para cursar magistério que o seu sonho começou a tornar-se realidade. “O estudo é o que vou poder deixar para vocês como herança, por isso, façam tudo o que for possível”, dizia sua mãe. 

As professoras Suzete Pezzi, de Educação Artística, e a professora Niúra Fontoura, de Música, são as inspirações de sua carreira. O jeito que lidavam e conduziam o ensino de artes encantou Guadalupe. “Em 1988, comecei a lecionar de 1ª a 4ª série, quando prestei concurso para a rede municipal de São Leopoldo. Sempre busquei colocar em prática aquela competência, maestria e dinamismo que as posturas da Suzete e Niúra tinham”, conta. 

E, é claro, a Arte sempre esteve presente no seu caminho. Depois de ter se formado em Pedagogia e ter assumido a diretoria de uma escola, a educadora foi convidada para ser professora de Arte, na escola de Artes Pequeno Príncipe de São Leopoldo. Mais tarde, em 2003, ingressou no curso Ensino da Arte na Diversidade, no Centro Universitário Feevale. Ela também cursou especialização em alfabetização e hoje tem outro sonho: quer ser doutora. Sua jornada e seus projetos são marcados pela presença da cultura afro-brasileira. A sua imersão nesse universo para prática pedagógica começou em 2006, quando ouviu de uma colega que havia todo um empenho da escola para trabalhar sobre Imigração Alemã, mas não havia o mesmo comprometimento com a Semana da Consciência Negra. Nesse mesmo ano, foi lançada uma formação na capital gaúcha sobre a Lei 10639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira nas escolas. “Como não fazia parte da coordenação da escola onde trabalhava, encaminhei um ofício à Secretaria Municipal de Educação, solicitei minha inscrição, até porque já estava implementando a dinâmica da lei nas minhas aulas”. A partir dessa formação, ela ampliou a sua visão sobre negritude e se reconheceu como pessoa negra.

 

Em 2006, ela participou de outro movimento. Desta vez, na Escola de Ensino Fundamental Maria Edila da Silva Schmidt. Foi criado um grupo de estudos para pensar mudanças na questão etnico-racial no Projeto Político Pedagógico (PPP) e a escola foi pioneira ao contemplar os aspectos relacionados à negritude da Educação Infantil até a 5ª série. 

Desde 2019, é a professora responsável pela biblioteca Fonte de Luz, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Edgar Coelho, desempenhando as funções de contação de história e mediação de leitura. No entanto, com a pandemia da Covid-19, as atividades presenciais foram suspensas e Guadalupe precisou pensar em novas formas de continuar a trazer o mundo das histórias para os alunos do ensino infantil ao 9º ano do Fundamental. Assim surgiram, por videochamadas, contação de histórias, formações para os alunos com escritores de livros, até uma pasta com livros para que os alunos pudessem acessar de casa. 

Além da biblioteca, Guadalupe também possui um grupo de dança no contra turno da escola, com estudantes do 4º ao 6º ano do Fundamental, o Kwanzaa. “O meu chão é a sala de aula, as invenções, de perceber que tudo é possível para melhorar o entendimento da escrita e da fala. De todas as possibilidades que a arte provoca”.

Sua carreira é marcada por prêmios e reconhecimentos pelo seu trabalho. Em 2006, ganhou o Prêmio Arte na Escola Cidadã, com o projeto “O Encanto da Arte: instrumento para a valorização da Cultura Afro-brasileira”. Nele, Guadalupe propôs atividades relacionadas à música, à dança, à culinária, a filmes e orixás para serem estudados e discutidos pelos alunos. Em 2008, foi reconhecida pelo Ministério da Educação pelo projeto “Tecidos africanos: símbolos, cores e um pouco de história” no prêmio Professores do Brasil. O principal objetivo foi despertar a consciência e valorização da cultura negra no Brasil por meio de alguns saberes artísticos e culturais de padronagens de tecidos africanos. Em 2012, foi premiada duas vezes: na 6ª edição do Prêmio Professores do Brasil, na Categoria Séries Iniciais, e no 6º Prêmio Educar para a Igualdade Racial, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, pelo projeto “Contos africanos e seu universo mágico”. Nele, ela construiu em sala de aula, uma mini biblioteca de livros sobre cultura africana. Ao retirar uma obra, cada livro tinha uma atividade e era feita em casa.

Em 2019, a sua dissertação de mestrado intitulada “Arte Afro-brasileira: saberes e fazeres poéticos e pedagógicos na Educação” foi vencedora do Prêmio Paulo Freire na Escola Cidadã, na categoria professor estudante, pela Câmara Municipal de São Leopoldo (RS). No estudo, Guadalupe analisou e refletiu sobre a forma como os professores da rede municipal de São Leopoldo trabalhavam a Arte Afro-brasileira na Educação Básica, e desenvolveu um curso de formação para o ensino, pesquisa e produção de recursos didáticos sobre o assunto. Fora das premiações, uma realização que ela cita com orgulho é a publicação de um artigo para o site que depois foi publicado na revista Nova Escola.

Apesar de todos esses reconhecimentos, a educadora não minimiza os percalços e o baixo reconhecimento da profissão.  “É um desafio para nós provarmos que nós somos sim a base de tudo, da educação, do conhecimento, da transformação.  No tempo de pandemia, estávamos trabalhando muito mais, atento ao aluno, buscando estratégias e alternativas para aqueles que não tinham condições de acessar a aula on-line”, conta. 

Guadalupe afirma que aquela motivação lá do início da carreira, no seu estágio em 1983, permanece até hoje. Talvez, ainda maior. “Tudo é novo, me emociono, busco ampliar meu conhecimento. Hoje com mais maturidade, mais disposta, estou pronta para novos desafios. Queria ser professora mas não imaginava chegar onde cheguei e ser exemplo e referência para os que estão começando. Ficou muito feliz”. Guadalupe  poderia já ter se aposentado, mas,por acreditar que ainda pode transformar a vida dos estudantes, permanece na profissão. “Sempre acreditei na educação e fui professora por causa disso. O aluno é o centro de tudo e ele é o principal motivo de eu ainda atuar”