Como usar a história da Matemática para despertar a curiosidade dos seus alunos

2018-11-22T06:02:51-03:00 15/11/2018|

Por Flavio Coelho para a coluna Pesquisa Aplicada, na Nova Escola

Nunca é demais reforçar que o conhecimento da história é essencial para se tomar boas decisões. Vimos no texto Conhecer a história da matemática pode ajudar a antecipar desafios de aprendizagem (publicado em 25 de agosto) que uma das dificuldades para o desenvolvimento da álgebra foi a aceitação dos números negativos, não como registros, mas sim como números propriamente ditos. Isso, vimos, não por acaso constitui-se em uma dificuldade de aprendizado aos alunos dos anos iniciais do ensino fundamental.

Queria agora discutir um outro aspecto do desenvolvimento histórico da álgebra, também relacionado aos números, que pode nos ajudar a entender as origens de algumas das dificuldades de aprendizagem dos alunos.

O sistema numérico que usamos atualmente é chamado de posicional e decimal. O sistema é posicional pois, a partir de um número pequeno de símbolos (no nosso caso, 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, ,7, 8 e 9), pode-se escrever qualquer número lançando mão das diversas posições em que eles são escritos: a posição da unidade, a da dezena, da centena e assim por diante. A segunda característica tem mais a ver com a quantidade de símbolos utilizada: dez, como visto acima.

Mas nem sempre foi assim. Alguns sistemas numéricos da antiguidade, por exemplo o egípcio, não eram posicionais. Outro que não é posicional é o sistema de numeração romano, ainda hoje utilizado em certas circunstâncias. Há símbolos para o um (I), o cinco (V), o dez (X), cinquenta (L), cem (C), quinhentos (D) e mil (M) e os números então são escritos a partir deles, juntando-os simplesmente. Observe que para tal sistema o conceito de posição se perde. Não há também um símbolo para o zero e tampouco é comum se escrever um número negativo usando-se tal sistema.

A grande dificuldade no sistema não posicional, como o romano, além do fato de que é preciso ir inventando símbolos para números maiores, é operacional. A multiplicação é, sem dúvida alguma, complicada de se fazer. Incentivamos o leitor a tentar multiplicar MCDLXIX por DCCLXVII, por exemplo.

Cabe também mencionar que os maias tinham um sistema posicional com vinte símbolos, um sistema vigesimal. Os maias possuíam um conhecimento matemático bastante apurado mas que, com o declínio dessa civilização a partir do século VIII, esse conhecimento não chegou a influenciar o mundo ocidental e muitos dos avanços conseguidos por eles se perderam momentaneamente.

Um outro povo da antiguidade, os babilônicos, também utilizavam um sistema posicional, no caso deles sexagesimal, mas com um complicador: nele, não havia inicialmente um símbolo para o zero, o que trazia óbvias dificuldades. Em nosso sistema, por exemplo, usamos o símbolo 1 na primeira posição para indicar o número um, mas se o deslocarmos para a segunda posição, e isso é indicado colocando-se o símbolo do zero (0) na primeira posição, teremos o valor 10.

Claramente o símbolo 1 na primeira posição (o das unidades) indica um número distinto desse símbolo colocado na segunda posição (o das dezenas). Imagine-se, então, a dificuldade de não se ter um símbolo para o zero. Não só esse número ficaria irrepresentável, mas também trazia complicações na questão da posição de um número. Os babilônicos possuíam 59 símbolos (veja na tabela abaixo).

Observe que eles são construídos a partir de dois símbolos básicos (um representando a unidade e outro representando a dezena), e que os números 1 e 60 estão associados ao mesmo símbolo, o que naturalmente traz alguma complicação. Com o tempo, apareceu um símbolo que indicava que uma determinada posição estava vazia. Há uma sutileza aqui que deve ser ressaltada: esse símbolo não era para o número zero, era apenas um símbolo que indicava a ausência de outros em uma representação.

zero visto como número só foi considerado muito tempo depois, e atribui-se aos indianos essa pioneira utilização. Como o nosso sistema posicional e decimal é uma herança do sistema hindu, via os árabes, pode-se inferir que foram os indianos que primeiro utilizaram um símbolo para o zero e o consideraram não só como uma representação de ausência de símbolos no sistema posicional, mas também como um número propriamente dito e, portanto, fazendo parte de operações.

Do ponto de vista histórico, a dificuldade em se considerar o zero como um número como qualquer outro está vinculada à operação de divisão. Como dividir um número por zero, por exemplo? Aqui também chegamos a um ponto de dificuldade aos alunos em seus anos iniciais de estudo. Concordam?

Para finalizar, mencionamos acima três sistemas posicionais com bases distintas, dez, vinte e sessenta. Vocês sabiam que a escolha dos primeiros números tem uma justificativa antropomórfica, isto é, o número de dedos das mãos ou o número de dedos de mãos e pés? Já o número sessenta foge um pouco dessa linha de argumentação e muito se especula sobre as razões para tal, mas não se chegou ainda a uma conclusão.

Flávio Ulhoa Coelho é professor titular do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), onde atuou como diretor no quadriênio 2010-2014. É também pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e do CNPq. Além de matemático é escritor, tendo publicado 4 livros didáticos em matemática e 7 livros de literaturas infanto-juvenil e adulta.

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