A BNCC ideal é irreal. A BNCC possível, que foi aprovada, é um instrumento poderoso de gestão da educação. A Universidade deve construir uma agenda propositiva que alavanque sua implementação
*Por Adolfo Calderón, para a Nova Escola
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referente à Educação Infantil e Ensino Fundamental, foi resultado do consenso alcançado no Conselho Nacional de Educação (CNE). O fato de sua aprovação não ter sido unânime, 19 votos a favor e três contra, reflete não somente as divergências de opiniões, mas também as múltiplas pressões a que os conselheiros estavam submetidos.
Como geralmente acontece na elaboração de legislações e normatizações, questões polêmicas são deixadas para posterior regulamentação. Na aprovação da BNCC não foi diferente, esse mesmo procedimento ocorreu na separação de uma BNCC para o Ensino infantil-fundamental e uma BNCC específica para o Ensino Médio e em questões sobre as quais não se atingia consenso como ensino religioso e identidade de gênero. Só dessa forma, o país pode avançar e começar uma cruzada para a implementação da BNCC.
Retomando as ideias de José Querino Ribeiro – professor uspiano (1907-1990) e fundador da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE) cuja obra, rotulada de “tecnicista”, foi esquecida – pode-se afirmar que a aprovação da BNCC foi resultado daquilo que ele já defendia em 1938, isto é, a urgência como “característica da obra escolar”. Enquanto se demora nas discussões sobre a implementação de políticas educacionais, milhares de jovens ficam à margem da garantia de seus direitos educacionais.
A aprovação da BNCC era uma necessidade diante da urgência da educação, pois não se pode sacrificar o presente e futuro de nossas crianças e da nossa juventude por discussões normativas realizadas ad aeternum.
Uma BNCC ideal é irreal, nunca existiria e nem seria aprovada, pois existem inúmeras concepções do que seria uma BNCC ideal. A BNCC possível foi viável sim, como resultado do consenso obtido entre as diversas visões e os múltiplos interesses que existem em torno dos fenômenos e processos educacionais.
Cabe, pois, relembrar premissa formulada por Ribeiro no âmbito da administração da educação: “o que é, não pode continuar; o que deverá ser, nunca se alcançará, mas o que pode ser, é possível procurar e alcançar com êxito”. Trata-se de uma perspectiva que opta pelo viável, a partir do senso de realidade, da acomodação de ideias e interesses a partir do jogo democrático, afastando-se de qualquer visão diletante da realidade.
Embora dentro das regras do jogo democrático, não se pode negar que alguns aspectos da BNCC são reflexo dos novos tempos de obscurantismo neoconservador que vive a sociedade brasileira com a emergência da Escola Sem Partido, fortalecimento da extrema direita e do fundamentalismo religioso-cristão. Só quem vive o dia-a-dia da escola sabe muito bem que não se pode tampar o sol com a peneira, a questão religiosa, a diversidade e suas implicações, gênero, orientação sexual, a intersetorialidade, entre outros, são temas, no âmbito dos Direitos Humanos, que perpassam o cotidiano escolar, frente aos quais a escola não pode se omitir.
Por isso e muito mais, convém destacar que a BNCC das etapas Educação Infantil e Ensino Fundamental não é uma obra acabada. Conforme o artigo 21 da resolução que institui e orienta a implementação da BNCC, ela deverá ser revista após cinco anos do prazo de efetivação. Novas arenas de luta política e novos atores surgirão. Avaliações deverão ser feitas e importantes mudanças para o aprimoramento também.
Com a aprovação da BNCC, o país adquiriu um poderoso instrumento de gestão da educação, que, potencialmente, pode contribuir para enfrentar desafios apontados, em 1990, pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Isto é, universalizar o acesso à educação, promover a equidade e concentrar a atenção na aprendizagem. Este último desafio tornou-se um pilar no trabalho pedagógico, pois garantir o direito à educação não se reduz apenas à universalizar o acesso aos serviços educacionais, ou seja, não é suficiente ter as crianças e jovens matriculados na escola. Sob a ótica da cidadania planetária, pode-se afirmar que o direito da educação somente se concretiza quando se garante a efetiva aprendizagem dos alunos.
Assim, implementar a BNCC é um dos grandes desafios para os próximos anos e, nesse contexto, o Dia D da BNCC, promovido pelo Ministério da Educação, o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Unidme), em 6 de março de 2018, representou a largada de uma mobilização nacional em prol de sua concretização. Mobilização da qual a universidade brasileira, por meio da atuação de gestores, professores, pesquisadores e cientistas não se pode furtar de estar presente, da mesma forma que esteve ao longo de todo seu processo de elaboração.
É evidente que a universidade, com suas teses, teorias e múltiplas abordagens, teve importante participação na elaboração da BNCC. Contribuiu com conhecimentos produzidos no âmbito das ciências da educação e outras áreas. Reflexo disso foi a outorga, por parte do Ministério da Educação, da condecoração de membros da Ordem Nacional do Mérito Educativo a destacados professores e pesquisadores, de universidades públicas e privadas, que colocaram sua ciência e conhecimentos a serviço do país.
Vozes dissonantes dentro da universidade existem, como sempre existiram ao longo de nove séculos de existência. O dissenso faz parte da universitas, aí radica o paradoxo da Universidade e sua capacidade de sobrevivência. Como afirmam diversos autores, ao longo dos séculos, a Universidade conseguiu ser detentora da educação em seu mais alto nível graças a sua capacidade de gerenciar suas contradições internas e seus múltiplos interesses. Talvez isso explique a convivência de setores que contribuíram decisivamente na elaboração da BNCC com outros que, diante das decisões a ela pertinentes, pregam explicitamente seu fracasso e sabotagem.
De um lado, acadêmicos que abraçam o que Max Weber chamava de ética da convicção, preocupados com grandes bandeiras da humanidade, sem mostrar interesse com sua viabilidade para o funcionamento do sistema. Por outro lado, acadêmicos que agem a partir da chamada ética da responsabilidade, em virtude de uma preocupação com as consequências de suas condutas, objetivando o funcionamento da sociedade dentro do que é possível e viável, e não a partir de situações ideais de impossível viabilização.
Nesse paradoxo, a universidade é desafiada a demonstrar sua responsabilidade social por meio da construção de uma agenda propositiva que alavanque a implementação da BNCC. Esta deverá perpassar pela reestruturação pragmática dos projetos pedagógicos e das matrizes curriculares dos cursos de pedagogia e das licenciaturas, bem como pela revalorização dos estágios no processo de formação docente, deixando para trás a cultura burocrática-cartorial instaurada. Inclui também o desafio de inovar na implementação de mestrados e doutorados profissionais que rompam com o academicismo característico dos mestrados e doutorados e atendam às reais necessidades do poder público, das famílias, dos mercados e quase mercados existentes na educação básica.
A agenda deve incluir ainda a necessidade de governos estaduais, municipais e universidades caminharem juntos. Para tanto, é necessária uma universidade de portas abertas ao diálogo e que saiba ouvir as demandas do poder público e da sociedade, superando a histórica tensão de resistência, sob o discurso da autonomia universitária, predominante em organizações do campo da educação. Enquanto isso não acontece, precisam-se de setores universitários, ainda que minoritários, que atendam às demandas da res publica. Se não podem abrir as portas, pelo menos que continuem abrindo as janelas.
Adolfo Calderón é professor titular do Programa de Pós-graduação em Educação da PUC-Campinas, pesquisador com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, membro do comitê técnico do Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede).
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