Descrever de forma clara o que é doutrinação é imprescindível para não violar o direito de expressão dos professores e nem ferir o desenvolvimento de nossos alunos
Por Ernesto Martins Faria, para a revista Nova Escola
O Brasil elegeu no domingo (28) seu novo presidente da República: Jair Messias Bolsonaro (PSL). Uma camada da população comemorou com aplausos e fogos, já uma parte com indiferença, e uma terceira vive a preocupação/medo de como será essa nova presidência da República. O autor desse texto está nesse terceiro grupo. No entanto, independentemente de qual seja a sua posição, o importante agora é nos unirmos e buscarmos trabalhar pelo país, o que significa respeitar o resultado das urnas e tentar dialogar com o novo presidente da República e a equipe que ele irá compor.
Em seu plano de governo, nas propostas para Educação, Bolsonaro coloca que precisamos “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, sendo “um dos maiores males atuais a doutrinação”. Não ficando preso apenas às palavras fortes e desrespeitosas com um dos maiores educadores da história do país, temos que ter consciência que o discurso do novo presidente da República aponta para uma convicção ligada ao seu entendimento do que é doutrinar. Por isso, este talvez seja o grande tema do qual setores da Educação precisarão dialogar com o governo para que consigamos garantir um modelo de educação inclusivo, que respeite as individualidades e que evite o retrocesso. Nessa temática, há duas questões-chave.
Primeiramente, é importante chegar ao entendimento com o presidente da República do que é e o que não é doutrinação. A descrição de forma objetiva dessa questão é imprescindível para que tal argumento não possa ser utilizado de forma a violar os direitos de expressão individual ou não permitir que os professores trabalhem a formação de valores com os seus alunos em sala de aula.
Aqui é fundamental que os opositores de Bolsonaro tenham ciência que concessões provavelmente terão que ser feitas, dada a posição forte do candidato sobre o tema. Será preciso buscar dialogar com o presidente com o uso de evidências e objetivando o que não pode ser entendido como doutrinação. A importância de se discutir questões como gravidez na adolescência, respeito a todas etnias e o livre direito à expressão devem ter apoio popular, e objetivar tais pontos cedo faz com que se possa garantir um maior controle social. O fim da doutrinação sinalizada pelo presidente não pode representar um ataque aos direitos humanos ou ao desenvolvimento moral, social e cognitivo dos alunos.
A segunda questão e talvez a mais preocupante é: o que o governo fará com os atuais alunos que não atingem bons níveis de aprendizagem e/ou com os “doutrinados”/”doutrinadores”? Na segurança, Bolsonaro tem a visão de que os bandidos precisam ser punidos de forma exemplar, ao passo que discute pouco o contexto de como a criminalidade nasce e se fortalece. Na educação, ele também já demonstrou acreditar na estratégia corretiva, ensinar pela punição. Aliado a esse discurso, Bolsonaro fala em impedir a “aprovação automática”, expressão pejorativa para abordar o modelo de progressão continuada que várias redes de ensino adotam e que só permite a reprovação escolar ao final de ciclos (após três anos de escolaridade, por exemplo).
Bolsonaro defende que em todo ano escolar um aluno possa ser reprovado, mas não disse, até então, o que fará para evitar altas taxas de reprovação (que comprovadamente têm impactos negativos na educação), estigmatização de alunos, uma situação de confronto entre alunos e professores e um maior potencial de evasão. Para alunos de 6 e 7 anos, por exemplo, será a lógica punitivista da reprovação que irá gerar o aprendizado deles?
Já sobre o que fazer com os ditos “doutrinados”/”doutrinadores”, é importante saber de Bolsonaro qual a posição dele em relação às pessoas que se manifestaram de forma convicta no apoio a seu adversário, Fernando Haddad (PT). O que fazer com os professores que têm uma visão mais à esquerda, como diz. Mesmo com uma visão ideológica diferente, é fundamental que o presidente da República busque o diálogo. Uma lógica punitivista aqui seria um ataque ao livre direito de expressão. Como o presidente eleito colocou, ele precisa governar para todos.
Precisamos, urgentemente, resgatar a união de nosso povo, resgatando o valor do diálogo e da empatia. Passado o período eleitoral, é muito importante que saiamos de uma lógica de confronto e embate. Ao atacar a dita doutrinação existente em escolas e universidades, Bolsonaro ganhou o apoio de parte da população, mas também conquistou uma resistência muito forte por parte de muitos professores e estudantes. Por isso, é fundamental que uma abertura ao diálogo seja puxada pelo novo presidente. Não se trata de ele abandonar suas convicções ou o que prometeu em seu plano de governo, mas de estar aberto ao que as evidências apontam e a fazer um detalhamento sério e comprometido de suas propostas. Sinalizar, como sinalizou em seu plano de governo, que irá expurgar a ideologia de Paulo Freire e acabar com a doutrinação não é o que muitos, como eu, desejavam para os próximos quatro anos. Mas as colocações de forma tão genérica do plano não o permitem já chamá-lo de um ataque aos direitos. Por isso, talvez algumas duras concessões tenham que ser feitas se o governo se mantiver firme nessa visão, mas precisamos trabalhar para objetivar várias questões, de forma a não ferirmos a nossa constituição, os direitos humanos e o desenvolvimento de nossas crianças e jovens. É o papel moral que nossa sociedade terá que ter.
Ernesto Martins Faria é diretor-fundador do Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) e doutorando em Organização do Ensino e Formação de Professores na Universidade de Coimbra.
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