Proposta defendida por Bolsonaro pode causar erosão da confiança entre alunos e professores e perdas para o aprendizado. Nos EUA, experiências semelhantes não deram certo
Por Charles Kirschbaum e Regina Madalozzo
O candidato à presidência Jair Bolsonaro apresenta em seu plano de governo a proposta de um sistema educacional livre de “doutrinação e sexualização precoce”, nos moldes das ideias do Escola Sem Partido (EsP). Ele também já se pronunciou, especificamente, contra a “ideologia do gênero”.
O tema “Escola sem Partido” tem gerado um debate intenso. Para alguns, trata-se da “Lei da Mordaça”. Para outros, traz um mecanismo que impeça a doutrinação e manipulação das crianças. Há um dilema moral, que ocorre pelo potencial choque entre vários interesses defendidos por lei. Por um lado, os professores necessitam de autonomia de cátedra e liberdade de expressão para desenvolver a atividade de docência. Por outro lado, as famílias têm o direito legítimo de defender seu ponto de vista sobre assuntos controversos. E finalmente, o jovem tem o direito de desenvolver sua própria visão de mundo para tornar-se um cidadão pleno. Em uma sociedade pluralista, todos esses interesses são levados ao diálogo e à negociação. O que efetivamente ocorre quando se observa a predominância de um ponto de vista sobre as outras partes?
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Tomemos a situação onde as famílias impõem a expectativa que os professores sejam neutros, para que os assuntos controversos não surjam em sala de aula. Os professores dificilmente poderão provar completa neutralidade: suas opiniões são frequentemente expressas, verbal ou tacitamente, através do tom de voz, da postura corporal e das micro emoções faciais. O estudo “Unsettled relations: Schools, gay marriage, and educating for sexuality. Educational Theory”, de Mayo, 2013, mostra que em várias experiências ocorridas nos Estados Unidos, a neutralidade exigida aos professores não foi traduzida em uma neutralidade no ensino em si. Ao contrário: a partir do silêncio obtido e do vácuo criado, os estudantes com opiniões mais fortes prevaleciam com relação à opinião dos mais fracos.
“Ao criar uma cultura em que parece que todos estão falando o mesmo e todos concordam entre si, corremos o risco de nos tornar menos democráticos”
Nesses contextos, os professores temiam proteger os alunos que defendiam opiniões minoritárias, para evitar serem acusados de parcialidade, mas o resultado era uma permissividade com relação à opinião do grupo majoritário. Ou seja, nos defrontamos com uma contradição: para proteger a opinião dos pais com relação a ideias minoritárias (como por exemplo, o casamento homoafetivo), os professores deveriam se posicionar. Mas, sem a possibilidade de se posicionar, prevalece a opinião do status quo, ou do que é considerado “normal”. Em algumas escolas nos EUA, ainda segundo o estudo de Mayo, foi reportado o aumento no número de suicídios de estudantes identificados com grupos minoritários após a imposição de neutralidade sobre os professores.
Em ambientes onde o diálogo pluralista não se estabelece, torna-se difícil debater questões de gênero. No entanto, já temos alternativas de trabalho nas escolas que permitem a discussão de gênero de forma plural. Por exemplo, o Conselho Britânico desenvolveu uma metodologia a respeito de igualdade de gênero que já está sendo aplicada na Turquia. Nela, não somente as questões de gênero são discutidas, mas professores e funcionários das escolas são sensibilizados e treinados para tratarem as crianças de forma mais igualitária independente de seu sexo. Quando os professores – consciente ou inconscientemente – acreditam que as meninas tenham menos chance de serem boas em matemática, por exemplo, menos esforço é colocado na educação delas e menores são as chances que elas mesmas consigam perceber suas capacidades. Professores habilitados a usar as “lentes de gênero” na educação são treinados a perceber o que lhes era, talvez, inconsciente a respeito das diferenças de tratamento entre homens e mulheres. Então, desenvolveram técnicas para engajar os estudantes, a despeito de seu sexo, em todas as matérias discutidas em sala de aula.
Ao criar uma cultura em que parece que todos estão falando o mesmo e todos concordam entre si, corremos o risco de nos tornar menos democráticos. Há mais de 30 anos, a cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann, que faleceu em 2010, propôs a teoria da “espiral do silêncio”, onde apresentava evidências de que uma minoria que se manifestasse enfaticamente sobre determinado assunto poderia fazer calar uma maioria silenciosa, por acreditarem que não seriam aceitos socialmente caso discordassem. É somente através do confronto aberto de ideias que poderemos exercer nosso direito à própria opinião. Do contrário, estamos sendo doutrinados da mesma forma, mas agora doutrinados para mantermos o que já está estabelecido.
O polo oposto também é indesejável. A identificação de vieses sistemáticos em livros didáticos pode revelar obstáculos que a sociedade enfrenta em construir o diálogo pluralista. O estudo “Political Education: controversial issues, neutrality of teachers and merits of team teaching”, de Yuen e Leung, realizado em Hong Kong, evidenciou que os alunos frequentemente temem expressar opiniões contrárias às do professor e sentem que dificilmente poderão alcançar boas notas se defenderem uma posição contrária a eles.
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“Aceitar que alunos e professores tenham discussões e trabalhem temas da atualidade permite aos estudantes o exercício da capacidade crítica, da avaliação de alternativas contraditórias e da sua própria construção do saber”
Inegavelmente, o objetivo de movimentos como “Escola sem Partido” foi evitar um pensamento formatado e de caráter ideológico em sala de aula. Mas, da mesma forma que a maior parte dos remédios têm um efeito colateral, medidas restritivas com relação a assuntos que podem ser abordados em sala de aula também causam perdas para o aprendizado dos alunos. No entanto, os instrumentos previstos pelo projeto possibilitam a judicialização de qualquer conflito entre alunos e professores e, com isso, a rápida erosão do ambiente de confiança na escola e a neutralização da opinião do professor.
Aceitar que alunos e professores tenham discussões e trabalhem temas da atualidade permite aos estudantes o exercício da capacidade crítica, da avaliação de alternativas contraditórias e da sua própria construção do saber. Aliás, a experiência com a contradição, com o diferente e com algo que não está diretamente influenciando nosso entorno é o que possibilita às pessoas terem suas próprias ideias e não serem guiadas somente para uma direção.
A legislação de outros países exige evidências muito mais fortes para que se instaure processos contra o professor, segundo a dissertação de doutorado de Feitosa de Brito, chamada de Schoolteachers’ Freedom of Expression: mapping the legal terrain in Canada and the policy debate in Brazil. É nesse intuito que os relatores da ONU que analisaram a EsP pediram ao governo brasileiro evidências mais fortes para que se prossiga com esse projeto de lei.
Frente aos mesmos dilemas, outros países escolheram fomentar ao invés de erodir as relações de confiança entre professores, famílias e alunos, reforçado os mecanismos de accountability (que pode ser traduzido por responsabilização) e transparência em várias instâncias decisórias da educação. Eles aprenderam a alinhar o pluralismo a desempenho acadêmico elevado e equânime. Resta a nós saber como faremos a conciliação de ideias tão dissonantes em um próximo governo.
Charles Kirchbaum é pós-doutor em sociologia econômica pela Universidade Columbia. Regina Madalozzo é doutora em economia pela Universidade de Illinois. Ambos são professores do Insper.
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